sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Teresinha, a Missionária da Escrita



"Ela fez resplandecer no nosso tempo o fascínio do Evangelho "(Papa João Paulo II)

"Madre, não escrevo uma obra literária, mas por obediência". (Manuscrito C)


O "furacão de glória" de Santa Teresinha devastou o mundo em 1997. Arrastou os cristãos para os caminhos da experiência da misericórdia de Deus. Nunca se falou e se escreveu tanto sobre a Santa de Lisieux. A Padroeira das Missões atraiu para si os olhos do mundo inteiro. Sua espiritualidade ficou mais conhecida em vista de dois acontecimento: comemoramos cem anos de sua morte e ela foi proclamada Doutora da Igreja.

Em 1998, mais uma motivo nos levou a evocar a pequena Thérèse: o centenário de publicação de sua autobiografia "História de uma Alma". Esta obra,  traduzida em cerca de 50 idiomas, junto com seus outros escritos, tornou-se um dos clássicos da espiritualidade cristã ocidental.

"História de uma Alma"encobre outra história. História confusa sobre a qual não nos deteremos neste artigo: a edição do texto, a aventura da publicação dos originais, o trabalho dos estudiosos em vasculhar a verdadeira letra de Teresinha perdida em meio aos cortes, acréscimos e classificações feitos por Madre Inês de Jesus. Autorizada pessoalmente pela autora a empreender essa tarefa, há os que acusam Madre Inês de haver excedido em sua tarefa.

Certo é que, no dia 20 de janeiro de 1896, irmã Teresa ajoelhou-se diante de Nossa Senhora, a Virgem do Sorriso, pedindo a sua Rainha para guiar-lhe a mão nessa difícil empreitada de obediência, "a fim de não traçar uma linha sequer que não fosse do seu agrado". Teria um ano exato para escrever as suas recordações de infância. "História de uma Alma" testemunha e revela a santidade de Teresinha. Não é o desabafo de uma mulher aprisionada num Carmelo a destilar sofrimento, doenças e carências afetivas. Muito menos contos enfeitados pelas lembranças de uma infância burguesa e feliz. É muito mais um testamento tenso de paixão, saído da pena de uma mulher sempre mais enamorada de um esposo fiel; narrativa de um amor enlouquecido pela misericórdia de Deus. Abismada nessa avalanche de amor, Teresinha deseja cantar e repetir eternamente "as misericórdias do Senhor". Misericórdia tamanha, que se torna plural, nas mãos ágeis dessa escriba que afirma ter escrito apenas por obediência, temerosa de que isso distraísse seu coração das coisas do esposo pela excessiva ocupação consigo. Receava perder-se nesse caminho de retorno a si mesma, sem saber que tal exercício ainda mais a aproximaria do Bem-amado carinhoso e exigente. Embora afirme não ter pretensões literárias, ela capricha na escrita mais que pode. Erra na gramática, rabisca, vacila em datas, sem conseguir dissimular o prazer que lhe traz o texto.

Entre uma atividade conventual e outra, Teresinha soube encontrar tempo para produzir seu texto encomendado. Através de sua priora, o Senhor lhe dera apenas um ano, não tanto para redigir suas memórias, mas "para escrever sem constrangimento" tudo que lhe viesse ao pensamento: "pensamentos a respeito das graças que Deus quis conceder-me". Escritura encomendada a uma autora-instrumento que transforma a ordem recebida em gesto de amor e serviço.

Teresinha entrega-se ao ministério da escrita qual serva diligente e apressada. Pronuncia o "fiat" à Palavra que vai sendo concebida entre dor e alegria, exercício prazeroso de memória. Dentro do peito fecundo pelo amor do Verbo Encarnado as lembranças se sucedem. Vai estabelecendo um texto fertilizado de amor que a prepara para uma entrega cada vez mais radical. A secura da alma provada pelo sofrimento também se transformar em texto no futuro.

A palavra de Teresinha é um nada. Só Ele tem as palavras de vida eterna. A precoce escritora irá repeti-las, ela, que acolheu os ditames do Verbo, confrontando-os com sua vida de entrega e abandono. Assim se torna criadora de uma palavra inédita que a faz gênio espiritual, Doutorada Igreja, Mestra de gerações. Na verdade, ela não está no centro da narrativa. Esmera-se em contar sua história pessoal, não porque se considere uma personagem ilustre. Estava longe da ideia de se transformar num mito espiritual. Ambiciona ensinar e guiar, apenas desejando que outras pessoas saibam como as misericórdias de Deus atuaram em sua vida. E, uma vez capturados por essas misericórdias, jamais lhes seja permitido duvidar da bondade e do amor inesgotável de Deus para com todos. Misericórdias que nela deslancharam maravilhas, justo nela, humilde florzinha, a mais débil entre todas as flores, um "quase nada" que escolhe tudo, disposto a escrever tudo que enterneça e envolva os outros nesta aventura de amor.

Há os que sentem asco das florzinhas, do cheiro de lavanda emanados da escrita teresiana. Ignoram a infância mimada de nossa autora, o ambiente familiar dominado pelas delicadezas da linguagem feminina mais afeita aos diminutivos, as influências culturais e literárias de então. Sabemos, contudo, que, "por baixo das rosas de açúcar e das nuvens de algodão doce (..) ", esconde-se a verdadeira Teresa, "a asceta do sacrifício contínuo, de corpo desgastado, de coração em frangalhos, de vontade inflexível, que viveu e morreu do excesso de um amor cujas doçuras ignorou ", afirma o autor Henri Ghéon.

"História de uma Alma"não deve ser simplesmente lida, senão meditada. Cada frase contém uma revelação. É um livro que propõe mudanças. Alguns motivos para se ler e meditar essa obra centenária:

• Teresinha recorre frequentemente à Bíblia para embasar seus pensamentos. Desperta em nós o apetite para ler a Palavra de Deus. Isso dá substância à escrita teresiana. "História de uma Alma" pode ser melhor aproveitada se a Bíblia estiver aberta, ao nosso lado.
• Teresinha é mulher realista. "História de uma Alma"é um livro escrito em estado de oração e com os ``pés-no-chão". Nada há de excessivo ou inverossímil aí. É o relato de uma experiência de Deus possível às pessoas comuns, sem dons extraordinários. O estilo teresiano não privilegia visões nem arrebatamentos místicos.
• A descrição do cotidiano da família Martin, sua piedade, sua união e os sofrimentos enfrentados numa atitude de fé e esperança fortificam nossa vida familiar.
• A perseverança de Teresinha em ingressar no Carmelo nos encoraja a realizar nossos ideais e sonhos, nossa vocação. Quando desejamos atingir uma meta, por mais obstáculos que se nos imponham, nós conseguiremos atingi-Ia, se isso estiver incluído nos planos de Deus. Nada nos será negado por Deus, desde que nos empenhemos na busca do que queremos. É só aguardar e confiar.
• A resignação e a maturidade com que enfrenta sua mortal enfermidade nos fazem mais fortes para carregar as cruzes diárias. O sofrimento não mais nos espantará. Iremos enfrentá-lo com um sorriso de confiança.
• Sua capacidade em perdoar nos incentiva a abrir nosso coração àqueles que nos humilham e magoam. • A descoberta da vocação universal à santidade. Ser santo é possível. Basta que busquemos a perfeição na vivência
das pequenas coisas. Não precisamos ser heróis para nos santificar.
• O encontro com o Deus verdadeiro, rico em misericórdia, cujo prazer é nos amar e nos carregar ao colo, porque somos todos pequenos e fracos.
• Você desistirá de viver uma religião formal, sem afeto, cheia de leis e obrigações, para trilhar um caminho de fé pleno de ternura, marcado pela entrega confiante nas mãos do Pai.
• Teresinha nos motiva a assumir nosso lugar no coração da Igreja. Aí não ficaremos de braços cruzados. Seremos o Amor que evangeliza, o Amor que serve aos irmãos excluídos. Essa consciência traz bons frutos para a nossa pastoral, para o nosso trabalho missionário. Uma paróquia dedicada à Santa de Lisieux encontra estampado nesse livro o seu carisma, o seu jeito de ser Igreja.

Ninguém será o mesmo após leitura e meditação da História de uma Alma. A partir daí será fácil  compreender porque um livro, após cem anos de sua publicação continua a robustecer a fé, a causar tantas conversões e a despertar nos corações o desejo de viver uma santidade possível e cotidiana.

Teresinha não oferece resposta para todas as nossas indagações. Mas nos ensina claramente como trilhar c caminho do abandono nos braços de Pai, a Pequena Via, e come poderemos viver com mais profundidade o Evangelho preparando-nos para ser os missionários do terceiro milênio impregnados de amor e misericórdia sem nenhuma espécie de medo.

Pe. Antônio Damásio Rego Filho




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