sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

MISSA NÃO É OPERETA

MISSA NÃO É OPERETA

Data de publicação: 12/03/2015
Missa é culto católico, com séculos de história, que não depende de lugar para acontecer, mas, em geral, acontece num templo. Quem dela participa não é ator e nem o presidente da assembleia, nem os cantores podem ser sua principal atração

Padre Zezinho, scj


Ópera é um teatro todo cantado. Opereta, um teatro declamado, falado e cantado. Pode haver danças no meio. É mais ou menos isso! Os detalhes eu deixo para os especialistas em artes cênicas. Missa é culto católico, com séculos de história, que não depende de lugar para acontecer, mas, em geral, acontece num templo. Não é nem nunca foi ópera ou opereta. Quem dela participa não é ator e nem o presidente da assembleia, nem os cantores podem ser sua principal atração. 
Mas são! E o são por conta de um fato: a maioria não estudou ou não respeita as orientações dos especialistas de uma ciência chamada Liturgia.  Liturgia deve ser o que impede que o altar vire palco, e o lado direito ou o esquerdo dele virem coxias! Regula o culto de maneira que transpareçam a catequese e a teologia daquele momento.  
Na hora em que o presidente daquele culto, ofuscado pelas luzes e pela fama local ou nacional, e algum cantor ou cantora deslumbrados com a sua chance de mostrar seu talento roubam a cena,  temos mais uma exibição de opereta, num templo católico. Gestos, corridinhas, roupas lindas, música que estoura os ouvidos, o padre onipresente, inserções aqui e ali no script do que tratam como peça de arte, 20 músicas para uma missa, as canções duram 50 minutos e as palavras da missa 12 ou 15, o sermão do padre 25... E o povo que não pagou para assistir é convidado a deixar sua contribuição no ofertório. Na semana que vem haverá outra exibição... Isto, nos cultos em que o altar vira palco, e o celebrante que poderia, sim,  ser alegre, comunicativo, acolhedor, resolve ser o ator principal com alguns coadjuvantes chamados banda católica.

Celebrar a liturgia − Nos outros cultos chamados de Eucaristia e tratados como Eucaristia a coisa é bem outra! Tem decoro, tem lógica, obedece-se ao conteúdo e aos textos daquele dia, as canções são verdadeiramente litúrgicas, os leitores sabem ler e não engasgam, os microfones não estouram, ninguém toca nem fala para ensurdecer, músicos não entram em competição, nenhum solista canta demais, cantores apenas lideram o povo, ninguém fica dedilhando cançõezinhas durante a consagração, como fundo para Jesus que faz o seu début, as canções são ensaiadas e escolhidas de acordo com o tema da missa daquele dia, não se canta na hora da saudação de paz porque ninguém diz bom dia, ou como vai cantando... Tais coisas só acontecem nas operetas...

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

De volta à 'banalidade do mal': reflexões em torno do 'Charlie Hebdo'

Quando em 1963 Hanna Arendt publica o livro Eichmann em Jerusalém e aborda a questão da "banalidade do mal” a partir do julgamento do nazista, Adolf Eichman, muitos intelectuais e leitores acharam sua reflexão descabida de sentido. Aliás, bem antes da publicação do livro quando seus textos eram relatos jornalísticos publicados no The New Yorker a polêmica e a controvérsia em relação a eles era grande. Achavam um desrespeito falar da "banalidade do mal” frente ao crime de extermínio de tantos judeus. Eichman, na realidade, era um homem banal, cumpridor de seus deveres e não hesitou em seguir cumprindo-os nos campos de extermínio, obedecendo a ordens. Os leitores não entenderam Hanna e hoje seguimos na mesma ignorância de antes em relação à expressão ‘banalidade do mal’ e aos acontecimentos atuais. Ela queria simplesmente reafirmar que fazer o mal é responsabilidade do ser humano e que não há forças superiores ou uma natureza diabólica que nos obrigue a tirar vidas, a roubar, a nos apossar do que não nos pertence e a nos julgar superiores uns aos outros. A banalidade do mal consiste nas ações destrutivas da vida naquilo que vivemos e observamos, na superfície visível da história. Se mostra através de uma cadeia de relações e decisões, de micro-poderes que acabam se tornando macro poderes e forças de aniquilação. A banalidade do mal é a alienação frente às ordens fundamentalistas quer de direita, de centro ou de esquerda. A banalidade do mal é nossa vida quotidiana eivada de ódios contra pequenas e grandes coisas.

Hoje, acompanhando, na medida do possível, os incidentes em torno do jornal satírico ‘Charlie Hebdo’ e das muitas manifestações em torno da chacina, me vieram ao espírito algumas reflexões inspiradas em Hanna Arendt. Não só é preciso reafirmar a "banalidade do mal”, mas afirmar certo uso da defesa contra o mal também como um mal. Livrar-se do mal com mal, livrar-se da intransigência religiosa dogmática pela intransigência humorista e política, livrar-se da culpa pela afirmação do direito à liberdade de imprensa, continuar a desenvolver preconceitos em relação aos ‘diferentes’ coloca-nos de novo no dualismo entre inocentes e culpados. E de novo ficamos num beco sem saída sempre acusando uns e outros, sempre buscando os inimigos e, aparentemente dando as mãos aos que aparecem como defensores da democracia. 

O "olho por olho” que vivemos hoje significa a restauração da lei da barbárie, significa nossa regressão coletiva em qualidade de humanidade. Sabemos bem que embora haja responsabilidades diferentes e graus de cumplicidade não há mais inocentes e nem culpados puros. Estamos imersos na trivialização do mal pelos meios de comunicação e na banalização da violência. Em outros termos a imprensa que chega ao grande público opera e convence a partir de dualismos: o bom e o ruim, o culpado e o inocente, o cidadão de bem e o mau cidadão ou o marginal, o meliante e assim por diante. Já de antemão se sabe quem será condenado. O noticiário do dia nos conduz ao bondoso e ao malvado e incita vontade de fazer justiça com as próprias mãos. Nem precisamos pensar, nem fazemos perguntas, nem suspeitamos da veracidade das informações. Com isso acentua-se a maldade aparente, imediata, que aponta o culpado ou os culpados e os acusa de terroristas, de criminosos ou de traidores da pátria. Não há análise crítica, não há história mais ampla a ser considerada, não há responsabilidades coletivas a serem pesadas e cobradas. Hanna Arendt explicava que a banalização do mal era algo para além de uma consideração do mal como uma essência no ser humano, algo que se explicaria a partir da má índole dos seres humanos ou de uma natureza perversa ou corrompida. Dizia ela, que o mal era algo cometido na superfície dos fatos através dos mecanismos e das relações que nos impomos uns aos outros. É o mal da arbitrariedade no qual cada um faz a sua lei segundo seus interesses e comete com isso atrocidades e crimes com conseqüências históricas grandiosas, tanto próximas quanto remotas. É o mal da obediência cega onde a desculpa é rainha e onde se afirma inocentemente "fiz porque me mandaram”. A vontade do sujeito se torna submissa a vontade de outros, às ordens de uma máquina sem nome capaz de exterminar muitos nomes. Os totalitarismos de nosso tempo disfarçados de democracia parecem ser os mais perigosos. Criam redes de cumplicidades sem que essas apareçam às claras, sem que se expliquem as razões de suas propostas e de seus atos, sem dar conta de suas iniciativas e de sua finalidade. Sem dúvida, nesse silencio escolhido algo dizem. Por exemplo, dizem defender a democracia. Mas, qual? Apregoam o direito: de quem? Falam de liberdade, fraternidade e igualdade. Mas, o que são elas, a quem pertencem e como as vivemos hoje?

Tudo isso é vasto demais como o ‘vasto mundo’ de Fernando Pessoa. Por isso quero pensar um pouco nas coisas pequenas. Penso nas esposas, nas mães, nos filhos e filhas e nas tensas relações entre os diferentes países como conseqüência da ação dos que executaram os assassinatos em Paris. Penso nos preconceitos que crescem e nas raivas obscuras que mantêm uns contra outros. Mas, afinal quem matou quem? Quantas são as vítimas? Sem dúvida houve mais mortos e feridos do que os computados pelos jornais e sistemas internacionais de Inteligência. Houve muita gente envolvida nos jogos de poder e contra-poder, não apenas no dia da tragédia, mas bem antes. Entretanto, isso foge da emoção do momento, dos ruídos de bombas necessários à imprensa.
Para os próximos, os da família, expressões como "defesa da liberdade de imprensa” nada significam quando o corpo amado está inerte, quando o filho de minhas entranhas acaba de ser morto, quando a palavra "pai” já não poderá ser pronunciada pelos filhos e filhas que ficaram. Esta dor é muitas vezes esquecida ou lembrada apenas quando pode fazer "efeito” de sensacionalismo periodista. Mas, para quem fica e perde laços de amizade, de filiação, de cumplicidade afetiva não há categorias claras que expressem o doloroso vazio que os/as habita. E, sabemos que essa dor é a primeira dor dentro do coração do mundo.

Os ‘campos de extermínio’ da segunda guerra mundial causam ainda arrepios em muitos de nós e ainda rendem páginas escritas e cinematográficas para muitos. Entretanto, os sofrimentos do momento nascidos de uma velha e longa espiral de violência, as perdas de entes queridos, a fome epidêmica, a violência cotidiana vivida, antes de serem transformadas em história passada são incomensuráveis. Desconhecemos sua intensidade e sua variedade. Dilaceram tanto quanto ou talvez muito mais do que a bala que eliminou vidas. Abrem feridas cujo sangue dificilmente é estancado de imediato, deixam marcas indeléveis naqueles cuja história de agora é marcada pelo assassinato de uns e outros, pela fuga em massa, pelo flagelo do medo de muitas caras. Tanto o julgado agressor quanto o agredido têm suas relações próximas e estas se vêem transformadas violentamente. Os muitos "pedaços de mim” que se vão "para além do bem e do mal”, que não podem ser midiatizados e polemizados, que não ouvem e não obedecem a nenhum apelo, a nenhuma súplica de amor, a nenhuma paixão, a nenhuma ordem superior permanecem na memória inefável dos próximos. A dor de ontem revive e prolonga a dor de hoje, dor anônima, sem importância, talvez até sem conseqüências políticas para o acirramento das guerras. Dor que pode até ser um estopim para novos combates, para vinganças revolvidas dos arquivos da história.

Lembro-me de uma mãe norte-americana que perdera o único filho na guerra do Iraque e recusava os títulos de honra que queriam dar a ele. Não queria prêmios para sua dor, não queria triviliarizar seu sofrimento, não queria recompensas pela perda sem volta, não exigia desculpas inúteis. Há muito mais dores do que imaginamos e muito mais dignidade do que a que computamos. Mas, é difícil entender porque não conseguimos transformar as "espadas em arados”, porque necessitamos matar uns aos outros para manter a estabilidade da economia mundial e porque não somos capazes de superar os limites dos Estados e das religiões.

As armadilhas da barbárie parecem crescer, provocam enganos, ocultam fatos, sentimentos, emoções. A vingança pequena ou grande é a moeda de troca mais comum. Ofenderam meu povo, falaram mal de meu pai, roubaram meu carro, queimaram minha casa, criticaram minha religião... Acabo com você e com vocês, seus desgraçados! Banalidade do mal, banalidade do bem. O que seria mesmo o bem? As armadilhas que nós preparamos para agir à flor da pele parecem ser a matéria prima de muitas notícias. Fazem os "furos de reportagem”, a caça aos bandidos, o enfrentamento emocionante de perigos, a exposição aos tiros de bandos ilegais, da polícia legal e ilegal... Todos são bandos de meninos brincando de mocinho e bandido carregando armas letais. BUM, Bum, bum, bum ... Mãe me ajuda, Mãe, Mãe, Mãezinha... Onde está você, mãe? O grito pela mãe entrega a terra o último suspiro do filho que se foi. Morreu mais um... Aquele estendido no chão é "meu filho” gritou uma mulher... E aquele que matou e foi depois foi eliminado pela polícia é "o meu” gritou outra. Todos mortos, estupidamente mortos, chacina geral. Saiu em primeira página e hoje o jornal estourou em vendas. Saímos do vermelho porque o sangue dos marginais fez entrar em ‘azul’ as contas do mês. Ficaram vermelhos de sangue os corações das mulheres saudosas de serem mães. Os gritos de ajuda ainda ressoam nos seus ouvidos apesar do silencio dos mortos; continuam lá como eco colado ao tímpano, como dor colada às entranhas, como lágrima interior que não quer estancar. Mas, isso é nada dizem alguns; logo vai passar... E o mundo não vai mudar, pois seguimos sendo lobos uns para os outros.

Hoje, já não há mais a força confiável do Estado ao qual se delega poderes, mas cada grupo e mesmo cada cidadão se sente no "direito” de interferir na ordem pública segundo os seus instintos. Há uma farsa do bem, um faz de conta que buscamos juntos a justiça, uma aparência de ordem estabelecida pelas armas e garantida pelos mísseis escondidos. A produção de armas de guerra continua sendo nosso lucro e nossa defesa! Bendita guerra que nos ajudou a vender tanto...

Já não queremos ser discípulos/as da solidariedade, nem da justiça e da paz mesmo reconhecendo sua fragilidade. Não queremos buscar o amor e o respeito ao próximo como gerenciador de nossas relações. Perdemos o pé no bem comum em meio a tanta arbitrariedade e corrupção.

Acho que me sinto meio perdida... Preciso acender uma lâmpada em pleno dia. Talvez seja a velhice que me torne mais limitada e descrente. Já não vejo com clareza por onde vai o caminho do diálogo humano, do cuidado de uns com os outros, do pão partilhado, das rodas e cirandas ritmadas, do respeito às diferenças. Estou cansada da hipocrisia das políticas e dos que ousam falar em nome de seu deus. Estamos enfeitiçados pela felicidade barata do consumismo, pelas sem razões de muitas crenças, pelas ordens e desordens da mídia, pelo ouro negro, pelo ouro amarelo e ouro branco que comandam o mundo. E apesar disso tudo... Imaginem, hoje, comprei um sorvete para um menino de rua que me pediu sorrindo: "Dona, compra um sorvete de chocolate para mim?”

Janeiro 2015.

Fonte: Adital


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Teresinha, a Missionária da Escrita



"Ela fez resplandecer no nosso tempo o fascínio do Evangelho "(Papa João Paulo II)

"Madre, não escrevo uma obra literária, mas por obediência". (Manuscrito C)


O "furacão de glória" de Santa Teresinha devastou o mundo em 1997. Arrastou os cristãos para os caminhos da experiência da misericórdia de Deus. Nunca se falou e se escreveu tanto sobre a Santa de Lisieux. A Padroeira das Missões atraiu para si os olhos do mundo inteiro. Sua espiritualidade ficou mais conhecida em vista de dois acontecimento: comemoramos cem anos de sua morte e ela foi proclamada Doutora da Igreja.

Em 1998, mais uma motivo nos levou a evocar a pequena Thérèse: o centenário de publicação de sua autobiografia "História de uma Alma". Esta obra,  traduzida em cerca de 50 idiomas, junto com seus outros escritos, tornou-se um dos clássicos da espiritualidade cristã ocidental.

"História de uma Alma"encobre outra história. História confusa sobre a qual não nos deteremos neste artigo: a edição do texto, a aventura da publicação dos originais, o trabalho dos estudiosos em vasculhar a verdadeira letra de Teresinha perdida em meio aos cortes, acréscimos e classificações feitos por Madre Inês de Jesus. Autorizada pessoalmente pela autora a empreender essa tarefa, há os que acusam Madre Inês de haver excedido em sua tarefa.

Certo é que, no dia 20 de janeiro de 1896, irmã Teresa ajoelhou-se diante de Nossa Senhora, a Virgem do Sorriso, pedindo a sua Rainha para guiar-lhe a mão nessa difícil empreitada de obediência, "a fim de não traçar uma linha sequer que não fosse do seu agrado". Teria um ano exato para escrever as suas recordações de infância. "História de uma Alma" testemunha e revela a santidade de Teresinha. Não é o desabafo de uma mulher aprisionada num Carmelo a destilar sofrimento, doenças e carências afetivas. Muito menos contos enfeitados pelas lembranças de uma infância burguesa e feliz. É muito mais um testamento tenso de paixão, saído da pena de uma mulher sempre mais enamorada de um esposo fiel; narrativa de um amor enlouquecido pela misericórdia de Deus. Abismada nessa avalanche de amor, Teresinha deseja cantar e repetir eternamente "as misericórdias do Senhor". Misericórdia tamanha, que se torna plural, nas mãos ágeis dessa escriba que afirma ter escrito apenas por obediência, temerosa de que isso distraísse seu coração das coisas do esposo pela excessiva ocupação consigo. Receava perder-se nesse caminho de retorno a si mesma, sem saber que tal exercício ainda mais a aproximaria do Bem-amado carinhoso e exigente. Embora afirme não ter pretensões literárias, ela capricha na escrita mais que pode. Erra na gramática, rabisca, vacila em datas, sem conseguir dissimular o prazer que lhe traz o texto.

Entre uma atividade conventual e outra, Teresinha soube encontrar tempo para produzir seu texto encomendado. Através de sua priora, o Senhor lhe dera apenas um ano, não tanto para redigir suas memórias, mas "para escrever sem constrangimento" tudo que lhe viesse ao pensamento: "pensamentos a respeito das graças que Deus quis conceder-me". Escritura encomendada a uma autora-instrumento que transforma a ordem recebida em gesto de amor e serviço.

Teresinha entrega-se ao ministério da escrita qual serva diligente e apressada. Pronuncia o "fiat" à Palavra que vai sendo concebida entre dor e alegria, exercício prazeroso de memória. Dentro do peito fecundo pelo amor do Verbo Encarnado as lembranças se sucedem. Vai estabelecendo um texto fertilizado de amor que a prepara para uma entrega cada vez mais radical. A secura da alma provada pelo sofrimento também se transformar em texto no futuro.

A palavra de Teresinha é um nada. Só Ele tem as palavras de vida eterna. A precoce escritora irá repeti-las, ela, que acolheu os ditames do Verbo, confrontando-os com sua vida de entrega e abandono. Assim se torna criadora de uma palavra inédita que a faz gênio espiritual, Doutorada Igreja, Mestra de gerações. Na verdade, ela não está no centro da narrativa. Esmera-se em contar sua história pessoal, não porque se considere uma personagem ilustre. Estava longe da ideia de se transformar num mito espiritual. Ambiciona ensinar e guiar, apenas desejando que outras pessoas saibam como as misericórdias de Deus atuaram em sua vida. E, uma vez capturados por essas misericórdias, jamais lhes seja permitido duvidar da bondade e do amor inesgotável de Deus para com todos. Misericórdias que nela deslancharam maravilhas, justo nela, humilde florzinha, a mais débil entre todas as flores, um "quase nada" que escolhe tudo, disposto a escrever tudo que enterneça e envolva os outros nesta aventura de amor.

Há os que sentem asco das florzinhas, do cheiro de lavanda emanados da escrita teresiana. Ignoram a infância mimada de nossa autora, o ambiente familiar dominado pelas delicadezas da linguagem feminina mais afeita aos diminutivos, as influências culturais e literárias de então. Sabemos, contudo, que, "por baixo das rosas de açúcar e das nuvens de algodão doce (..) ", esconde-se a verdadeira Teresa, "a asceta do sacrifício contínuo, de corpo desgastado, de coração em frangalhos, de vontade inflexível, que viveu e morreu do excesso de um amor cujas doçuras ignorou ", afirma o autor Henri Ghéon.

"História de uma Alma"não deve ser simplesmente lida, senão meditada. Cada frase contém uma revelação. É um livro que propõe mudanças. Alguns motivos para se ler e meditar essa obra centenária:

• Teresinha recorre frequentemente à Bíblia para embasar seus pensamentos. Desperta em nós o apetite para ler a Palavra de Deus. Isso dá substância à escrita teresiana. "História de uma Alma" pode ser melhor aproveitada se a Bíblia estiver aberta, ao nosso lado.
• Teresinha é mulher realista. "História de uma Alma"é um livro escrito em estado de oração e com os ``pés-no-chão". Nada há de excessivo ou inverossímil aí. É o relato de uma experiência de Deus possível às pessoas comuns, sem dons extraordinários. O estilo teresiano não privilegia visões nem arrebatamentos místicos.
• A descrição do cotidiano da família Martin, sua piedade, sua união e os sofrimentos enfrentados numa atitude de fé e esperança fortificam nossa vida familiar.
• A perseverança de Teresinha em ingressar no Carmelo nos encoraja a realizar nossos ideais e sonhos, nossa vocação. Quando desejamos atingir uma meta, por mais obstáculos que se nos imponham, nós conseguiremos atingi-Ia, se isso estiver incluído nos planos de Deus. Nada nos será negado por Deus, desde que nos empenhemos na busca do que queremos. É só aguardar e confiar.
• A resignação e a maturidade com que enfrenta sua mortal enfermidade nos fazem mais fortes para carregar as cruzes diárias. O sofrimento não mais nos espantará. Iremos enfrentá-lo com um sorriso de confiança.
• Sua capacidade em perdoar nos incentiva a abrir nosso coração àqueles que nos humilham e magoam. • A descoberta da vocação universal à santidade. Ser santo é possível. Basta que busquemos a perfeição na vivência
das pequenas coisas. Não precisamos ser heróis para nos santificar.
• O encontro com o Deus verdadeiro, rico em misericórdia, cujo prazer é nos amar e nos carregar ao colo, porque somos todos pequenos e fracos.
• Você desistirá de viver uma religião formal, sem afeto, cheia de leis e obrigações, para trilhar um caminho de fé pleno de ternura, marcado pela entrega confiante nas mãos do Pai.
• Teresinha nos motiva a assumir nosso lugar no coração da Igreja. Aí não ficaremos de braços cruzados. Seremos o Amor que evangeliza, o Amor que serve aos irmãos excluídos. Essa consciência traz bons frutos para a nossa pastoral, para o nosso trabalho missionário. Uma paróquia dedicada à Santa de Lisieux encontra estampado nesse livro o seu carisma, o seu jeito de ser Igreja.

Ninguém será o mesmo após leitura e meditação da História de uma Alma. A partir daí será fácil  compreender porque um livro, após cem anos de sua publicação continua a robustecer a fé, a causar tantas conversões e a despertar nos corações o desejo de viver uma santidade possível e cotidiana.

Teresinha não oferece resposta para todas as nossas indagações. Mas nos ensina claramente como trilhar c caminho do abandono nos braços de Pai, a Pequena Via, e come poderemos viver com mais profundidade o Evangelho preparando-nos para ser os missionários do terceiro milênio impregnados de amor e misericórdia sem nenhuma espécie de medo.

Pe. Antônio Damásio Rego Filho




quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

ETERNA INFÂNCIA DE DEUS

“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura”  (Lc 2,12)

 A humanidade de Deus nos assusta, porque, no fundo, temos medo de nossa própria humanidade. Nesse sentido, a festa do Natal é uma ocasião propícia para que pensemos no dano que nos tem causado e continua causando o medo de nossa própria humanidade. Com certeza, nesse medo está a explicação e a raiz de tantas violências e maldades que teriam e que poderiam ser evitadas. São muitos aqueles que, mesmo tendo fé, passam a vida aspirando ser “como Deus”. E ao forçar tanto querer ser “divinos” deixam de ser verdadeiramente “humanos”.  Tanto falso apetite de “divindade” acabou despedaçando nossa própria “humanidade”.

De fato, o que há de verdade nos evangelhos da infância é que o “divino” (ou seja, Deus) se deu a conhecer, se fez presente e se manifestou no “humano”. E precisamente no mais humano: uma criança, sem “títulos”, de condição humilde e em circunstancias de pobreza, desamparo e perseguição. O “divino” não se fez presente no portentoso, no milagroso, no assustador, como aconteceu com Moisés na sarça ardente ou no monte Sinai. O “divino” se fez presente em um recém-nascido, em um estábulo, entre palhas e animais. E foi anunciado aos pastores, um dos ofícios marginalizados daquele tempo.

O Evangelho tem algo muito forte, muito duro, que não cabe em nossa cabeça. O Evangelho é a afirmação mais sublime do humano. A partir do primeiro Natal que houve na história, devemos dirigir nosso olhar para as “margens”e contemplar a presença de Deus que não se encontra no grandioso e notável, mas naquele que é marcado pela simplicidade e despojamento. Encanta-nos quem é poderoso, o importante, o solene, o que impressiona e chama a atenção, o que se impõe e causa admiração... Mas, o que não é nem mais nem menos que humano, o que é comum com todos os humanos..., precisamente isso que é o que tantas vezes menos valorizamos, isso é o que mais necessitamos. Porque é o que mais nos humaniza, e o que mais humaniza a vida, a convivência, a sociedade. Somos “educados” para sermos importantes, mas não para sermos simplesmente humanos. Daí, a consequência mais perigosa e mais funesta que todos arrastamos. O poder nos seduz; a glória nos atrai; a vaidade nos faz autorreferentes.  Queremos, a todo custo, ser importantes, destacar, ser notáveis... Tais sentimentos nos rompem por dentro e destroçam nossa própria humanidade.

Recuperemos o Natal essencial, o Natal da Vida. Na vida de Jesus, feita de carne solidária, reconhecemos a Encarnação universal, para além de todas as fronteiras de espaço, de tempo, de cultura, de raça, de religião. A Encarnação de Deus em todos os mundos, desde o primeiro Big Bang. Isto é o Natal para além das formas: acolher e viver a eterna Infância ou a Bondade eterna de Deus em todas as coisas, apesar de tudo.
A festa de Natal nos conecta com a essência de nossa própria humanidade. O que se celebra é um Deus-menino, que está chorando entre animais, e que não mete medo nem julga ninguém. É bom que os cristãos voltem a esta imagem: o eterno menino que, no fundo, nunca deixamos de ser. Eterna infância de Deus. Aquele que não cabe no universo cabe no seio de uma jovem mãe. O Criador é cuidado no colo de uma mulher. O Amor eterno necessita ser mimado e abraçado como uma criança. Ele se faz necessitado para que aprendamos a deixar-nos ajudar e aprendamos assim a ajudar os outros. Ele está desamparado, para que tenhamos lar, pátria, calor. Repousa em um presépio, para que todas as criaturas possam sentar-se junto à grande mesa de toda a Terra.

Ter o “eterno menino” diante de nossos olhos desperta em nós renovação de vida, inocência, novas possibilidades de vida que nos impulsionam em direção ao novo futuro.

 - Imaginamos “outro Natal possível”, mais próximo do Menino Jesus nascido humildemente em um presépio, onde em lugar de “dar presentes”, nos “faremos presentes” junto aos famintos, necessitados e excluídos, abriremos corações e portas à chegada Salvadora do Menino Deus. A solidariedade e a ternura abrirão passagem frente ao individualismo, ao egoísmo e ao consumismo. Imaginamos um Natal onde aproveitamos para fazer uma viagem ao interior de nosso espírito, ali onde habita o Deus da Vida que dá fundamento à nossa verdadeira identidade. Imaginamos um Natal simples, solidário, alegre... sem luxos, onde faremos presentes em nossos corações a todos as pessoas que sofrem e que são as preferidas de Deus Pai e Mãe.

Estes são, pois, os sentimentos que queremos alimentar neste Natal, em meio a uma situação sombria da Terra e de toda a humanidade. Sentimentos de que ainda temos futuro, porque a Estrela é magnânima e o “Menino” é eterno e porque ele se encarnou neste mundo e não permitirá que este se afunde totalmente. Nele se manifestou a humanidade e a jovialidade do Deus de todos os povos. Todo é resto é passageiro. Todos intuimos que o humano é uma maravilha, mas que precisa ser cuidado e potenciado. O Natal é o anúncio de que a porta para esse cuidado e essa potenciação está aberta. É inegável que temos desfigurado o Natal até torná-lo irreconhecível e anticristão. Mas continua pulsando em nós o desejo de outros natais possíveis. (Pe. Adroaldo, SJ)